Dimensões da violência contra crianças e adolescentes
Artigo por Colunista Portal - Educação - sexta-feira, 7 de novembro de 2008
Educação Infantil - Dimensões da violência contra crianças e adolescentes, apreendidas do discurso de professoras e cuidadoras
Vera Lúcia de Oliveira GomesI; Adriana Dora da FonsecaII
I Enfermeira. Doutora em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora Titular do Departamento de Enfermagem da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Enfermagem, Gênero e Sociedade (GEPEGS)
II Enfermeira. Doutora em Enfermagem pela UFSC. Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem da FURG. Líder do GEPEGS
Neste estudo exploratório-descritivo, com abordagem qualitativa, objetivou-se investigar a percepção de cuidadoras de uma Instituição de Educação Infantil e professoras de uma Escola de Ensino Fundamental acerca do conceito de violência, bem como a conduta por elas adotada, frente a situações de violência contra crianças e adolescentes. Os dados foram coletados em agosto de 2004, por meio de entrevista semi-estruturada, gravada e transcrita. Constatou-se que as informantes reconhecem violência tanto física quanto psicológica na interação família e crianças, bem como das crianças entre si e referem a negligência como forma de violência. Quanto à atuação das cuidadoras e professoras, percebeu-se a naturalização da violência. O estudo fornece subsídios para atuação de enfermagem frente a situações de violência contra criança e adolescente em instituições educacionais e apresenta a Consulta de Enfermagem como instrumento metodológico capaz de subsidiar as condutas a serem adotadas.
INTRODUÇÃO
Atualmente, enfáticas discussões sobre violência vêm sendo evidenciadas após crimes hediondos ou chacinas. Nessas ocasiões, são retomados, pela imprensa e pela população, temas como pena de morte, prisão perpétua, ou ainda, é solicitada a presença do exército nas ruas. Tudo o que pode aumentar a segurança individual e coletiva é lembrado e, se possível, de imediato operacionalizado. Passado o impacto inicial, o interesse volta-se para outros temas, e a violência retorna, mesmo que temporariamente, ao estado latente. A ausência de uma reflexão sistemática sobre o assunto, faz com que a violência não promova "causas, nem história, nem a revolução, nem o retrocesso, mas pode servir para dramatizar queixas e trazê-las à atenção pública".1:58 Refletir sobre este tão atual e polêmico tema, enfocando-o em uma dimensão além da puramente emocional, é um dos propósitos deste trabalho.
O termo violência tem sua origem na palavra latina violentia, que significa constrangimento exercido sobre uma pessoa para levá-la a praticar algo contra a sua vontade.2 pode ainda ser definido como constrangimento físico ou moral; uso da força e coação.3 Obviamente, qualquer pessoa pode ser vítima de violência, porém é inegável que crianças e adolescentes são os mais vulneráveis.
Há muitos anos, testemunhamos um processo de banalização da violência, e a própria mídia investe maciçamente nessa temática, explorando-a de modo sensacionalista. Os termos violência doméstica, violência contra a mulher, violência contra crianças e adolescentes aparecem quase que exclusivamente associados a crimes, dando a falsa idéia de que apenas o crime é violência. É necessário ter em mente que a criminalização da violência leva a uma visão unilateral do fenômeno e, conseqüentemente, ao ocultamento de outras formas de violência, hoje descritas tanto nacional quanto internacionalmente.
Entre as formas de violência praticadas contra crianças e adolescentes destacamos a física, quando causa dano físico, podendo variar de lesão leve a conseqüências extremas como a morte; a psicológica, quando produz um padrão de comportamento destrutivo, afetando a saúde mental; a sexual, quando envolve jogo, estimulação, contato ou envolvimento em atividades sexuais, em que crianças ou adolescentes não compreendem e não consentem; e a negligência, quando não se atende àquilo que é indispensável ao adequado crescimento e desenvolvimento, incluindo a falta de interesse para com as necessidades e manifestações da criança e adolescente, a falta de calor humano/amor e de responsabilidade.4 Entretanto, não podemos considerar negligência aquelas situações em que, por absoluta carência de recursos, necessidades básicas não são adequadamente atendidas.
Há ainda a violência simbólica, ou seja, "formas e estratégias de coerção que fazem uso de significados simbólicos socialmente construídos e veiculados".5:279 É importante enfatizar que a conotação que deve ser dada ao adjetivo simbólico, não pode simplesmente reduzi-lo ao oposto de real. Tal interpretação reduziria a violência simbólica a uma violência meramente espiritual, ou seja, sem efeitos reais.6
Nas concepções bourdieusianas, entre as trocas desiguais figura a violência simbólica, a qual é quase invisível às suas vítimas, pois "se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também com a freqüência dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la e de sofrê-la".7:22 A violência simbólica pode ainda ser definida como uma "violência suave onde se apresentam encobertas as relações de poder que regem os agentes e a ordem da sociedade global. Neste sentido, o reconhecimento da legitimidade dos valores produzidos e administrados pela classe dominante implicam o desconhecimento social do espaço onde se trava, simbolicamente, a luta de classes".8:25
Assim, a aceitação silenciosa e implícita dos limites impostos pode gerar na pessoa dominada tanto emoções como vergonha, humilhação, ansiedade e culpa, como também despertar sentimentos como amor, admiração e respeito.
Os sociolingüistas que estudaram a linguagem de pessoas de classes populares em situação de tensão emocional, observaram a ocorrência de uma perda do capital lingüístico associada à timidez, ou seja, as pessoas não perdiam a capacidade de falar, mas a vergonha impossibilitava a livre expressão. Dessa forma, "a intimidação é uma forma típica de violência simbólica. A timidez é precisamente um reconhecimento forçado da dominação que a gente pode tentar afastar com todas as forças (especialmente as da consciência), mas sofrendo sua ação em nosso corpo (a gente treme todo, a consciência diz não, mas o corpo treme)".9:37
Essas emoções e sentimentos, com freqüência, tornam-se mais observáveis por meio de manifestações corporais como enrubescer, gaguejar, suar, tremer, entre outras, demonstrando a submissão ao dominante.6
Fica evidente que a concepção de violência adotada neste estudo inclui o conjunto de ações ou omissões que podem cessar, impedir, deter, ou retardar o pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes. Nela figuram, como já foi mencionado, não só aquela violência manifesta pelo extermínio, a agressão física e o abuso sexual, mas também aquela cujos implementos materiais foram substituídos por outros não menos cruéis. Tais instrumentos, muitas vezes subliminares e imperceptíveis, operacionalizam a violência simbólica nas suas mais diversas formas; entre elas, a negligência.
Considerando-se que a violência e a dominação simbólicas ocorrem com a cumplicidade tácita do dominado, bem como das estruturas de dominação por ele incorporadas, é evidente que tomar consciência é indispensável, mas não o suficiente para transformá-la.
É fundamental uma reeducação das disposições adquiridas, ou habitus, isto é, "estruturas mentais através das quais os agentes apreendem o mundo social são, em essência, produto da interiorização das estruturas do mundo social".10:158 O habitus é ainda produto de toda a história individual, incluindo as experiências formadoras da primeira infância e toda a história coletiva da família e grupo social.10 Do ponto de vista conceitual, o habitus é aplicável às mais diversas relações do agente com o mundo e em diferentes contextos sociais incluindo às questões de gênero, etnia, cultura ou língua, ou seja, às questões carregadas de estigma e preconceito. O habitus caracteriza-se pela resistência a mudança, pois, sendo uma relação social somatizada, lei social convertida em lei incorporada, não está entre aquelas que podem ser sustadas com a simples força de vontade.10
Nesse sentido, as oportunidades educativas, dependendo da qualidade da relação que é estabelecida com a cuidadora ou com a professora, podem ocorrer tanto no sentido do pleno desenvolvimento das potencialidades da criança, quanto no sentido da intimidação, através da qual, as condições natas vão sendo gradativa, porém insistentemente transformadas. Assim, crianças potencialmente inteligentes transformam-se em condicionadas; livres, em submissas; pesquisadoras, em repetidoras; ousadas, em acomodadas; reivindicadoras, em caladas; enfim, sem que ninguém se aperceba, sujeitos vão sendo transformados em objetos.
Hoje, principalmente para as crianças pobres, social e culturalmente marginalizadas, a autoridade foi substituída pela violência. É difícil detectar, tanto prática quanto teoricamente, o que a autoridade realmente é, no entanto, é certo que ela implica "uma obediência na qual os [seres humanos] retêm sua liberdade".11:144 Nas concepções arendtianas, essa abordagem deve ser precedida por algumas considerações a respeito do que autoridade não é nem nunca foi "visto que a autoridade sempre exige obediência, ela é comumente confundida com alguma forma de poder ou violência. Contudo, a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si fracassou. A autoridade, por outro lado, é incompatível com a persuasão, a qual pressupõe igualdade e opera mediante um processo de argumentação. Onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso. Contra a ordem igualitária da persuasão ergue-se a ordem autoritária, que é sempre hierárquica. Se a autoridade deve ser definida de alguma forma, deve sê-lo, então, tanto em contraposição à coerção pela força como a persuasão através de argumentos".11:129
Cabe destacar a constante e crescente crise de autoridade que se fez presente durante todo o século XX, a qual, mesmo sendo essencialmente política, ocasionou a queda de todas as autoridades tradicionais, espalhando-se inclusive para áreas pré-políticas como na educação e na criação de filhos e filhas. Assim, percebemos que a autoridade, tão necessária à socialização das crianças, que permeava as relações entre pais, mães e filhos/filhas, adultos e crianças, professoras, professores, e alunos/alunas, bem como outros modelos de autoridade, deixaram de ser plausíveis, sendo, em muitos casos, substituída pela violência. É bem verdade que "nas famílias, na escola e no trabalho, as pessoas estão menos dispostas a aceitar a autoridade".12:82
O Brasil possui uma das legislações mais avançadas na área da assistência à criança e ao adolescente. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado pela Lei 8069/90,13 promoveu a substituição da antiga Doutrina da Situação Irregular, que centrava o problema na criança ou no adolescente, pela Doutrina da Proteção Integral, que procura verificar como a família, a sociedade e o Poder Público permitiram que determinada criança ou adolescente fosse exposta a uma situação específica de risco. Através dessa doutrina, pelo menos teoricamente, crianças e adolescentes em nosso país são prioridade absoluta; são sujeitos de direito; têm garantia de defesa. Em seu art. 5º, o ECA assegura que "nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade, e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado por ação ou omissão aos seus direitos fundamentais".13:12
Paradoxalmente, a cada dia tornam-se mais visíveis as violações cometidas contra os direitos de crianças e adolescentes. A realidade mostra que, "há um aumento alarmante da violência, conjugado com o aprofundamento do conhecimento sobre a questão da violência doméstica contra a criança e o adolescente".4:97
A mortalidade infantil, o analfabetismo, a evasão escolar, a negligência, a exploração de mão-de-obra e o abuso sexual integram a história de vida de milhões de crianças brasileiras. Inegavelmente, mantemos uma enorme dívida social com a população infantil. Ao utilizar o verbo na primeira pessoa do plural, referimo-nos ao compromisso de todos e de cada um, referimo-nos à necessidade de transformar a indignação em ação. No entanto, as ações só serão efetivas se fundamentadas em conhecimento teórico e prático acerca das peculiaridades de crianças e adolescentes, da legislação que os protege e dos recursos disponíveis na comunidade para a garantia de seus direitos e cumprimento de seus deveres.
Fonte: PORTAL EDUCAÇÃO - Cursos Online : Mais de 1000 cursos online com certificado
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