CAMILA GUIMARÃES - REVISTA ÉPoCA - 17/01/2013 - RIO DE JANEIRO, RJ
Uma das maiores conquistas da educação brasileira na última década foi ter colocado para dentro da escola 98% das crianças com idade entre 6 e 14 anos. Um esforço das redes municipais de ensino, responsáveis pela matrícula da maioria desses alunos. A partir de 2013, os municípios terão de recuperar o fôlego para criar vagas para mais 1,4 milhão de pequenos brasileiros fora da escola. São crianças de 4 e 5 anos que deverão estar matriculadas na pré-escola até 2016. Receber e educar com qualidade essas crianças é a missão de gestores municipais de ensino que assumiram seus mandatos em 2013.
A universalização da pré-escola foi estabelecida por uma emenda constitucional em 2009, que estendeu a obrigatoriedade da oferta de ensino gratuito para crianças e adolescentes de 4 a 17 anos (antes, era de 6 a 14 anos, os nove anos do ensino fundamental). Os pais também serão obrigados a matricular os filhos. O prazo para as redes cumprirem a nova regra é 2016. O investimento não é pequeno. Se for considerado o custo mínimo por aluno, um valor estipulado pelo governo (em 2012, foi R$ 2.096 por ano), é de quase R$ 3 trilhões. “É uma estimativa genérica, e algumas redes investirão mais que outras, mas dá uma ideia do desafio”, diz Paula Louzano, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
Quem assume esse desafio são as prefeituras, responsáveis por quase 75% das matrículas da pré-escola. Elas terão de construir novas escolas, contratar e treinar novos professores, comprar equipamentos e materiais didáticos e depois fazer a manutenção de tudo isso. “É uma das maiores preocupações entre os secretários”, afirma Cleuza Repulho, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). “Estamos falando de infraestrutura, construção de prédios, localização de terrenos livres, licitações. Isso leva tempo e exige um investimento que boa parte das prefeituras não tem como fazer.” Em São Caetano do Sul, São Paulo, onde a demanda por vagas está 100% atendida, o planejamento começou há quase duas décadas. Hoje, são 41 escolas de ensino infantil, 15 delas em período integral. “São quase três escolas por bairro”, diz Maria Cecília Guelere, secretária de Educação.
As redes municipais, sobrecarregadas de responsabilidades, herdarão a maior parte do trabalho. No total, as prefeituras custeiam 23,3 milhões de alunos, ou 53% do total de estudantes do ensino público básico de todo o país. Justamente elas têm a menor capacidade de investir. O repasse da arrecadação de tributos federais feito pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) não garante, em muitos casos, o investimento mínimo por aluno. Em 2012, a União teve de complementar o valor do repasse para chegar ao mínimo de R$ 2.096 em nove Estados (Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco e Piauí). Segundo Cleuza, da Undime, a maior parte do Fundeb é usada pelas prefeituras para pagar salários de professores. “A expectativa dos municípios é que aconteça um aumento do repasse nos próximos anos”, diz ela.
Um dos efeitos da municipalização do ensino infantil é a grande desigualdade no atendimento entre municípios até dentro do mesmo Estado. O Fundeb diminuiu essas diferenças, mas elas ainda são preocupantes e atrapalham o ideal de equidade na educação (um ensino de qualidade para todos, mesmo levando em consideração as condições socioeconômicas de cada um).
A sobrecarga nos municípios não afetou a oferta de vagas na pré-escola nos últimos dez anos. Em 2010, 80% das crianças de 4 e 5 anos estavam atendidas. Em 2000, eram 51%. O 1,4 milhão de crianças que ainda estão fora da escola corresponde às mais difíceis de incluir. Elas estão localizadas em áreas periféricas, de difícil acesso. Isso exigirá ainda mais planejamento dos gestores. “Fazer um levantamento de onde estão essas crianças é um primeiro passo fundamental”, diz Alexandre Schneider, ex-secretário de Educação da prefeitura de São Paulo. Desde 2006, a prefeitura centraliza os pedidos de vagas na pré-escola em seu site – e aposentou o velho sistema de mães procurarem as escolas para pedir matrícula. “A cidade foi dividida em setores, e sabemos exatamente onde está a demanda. As mães conseguem ver em que lugar estão na fila de espera.” A fila de espera em outubro, segundo Schneider, era de 5.600 vagas. Em 2007, era de 75 mil. A ampliação custou caro. O aumento do investimento na pré-escola passou de R$ 170 milhões, em 2004, para R$ 1 bilhão, em 2012.
É um investimento que vale cada centavo – e traz retornos futuros para o país. Um dos estudos mais importantes nessa área foi o do economista americano James Heckman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2000. Ele estudou o efeito de programas sociais de educação e concluiu que, se a educação é crucial para o avanço de um país, então, quanto mais cedo uma criança for educada, melhor. Primeiro, porque isso amplia o efeito da educação. O desempenho das crianças que começam mais cedo na escola é melhor ao longo de sua jornada acadêmica. Há efeitos comprovados também em seu comportamento social. Os grupos de alunos acompanhados durante duas ou três décadas geraram dados que mostram baixa tendência à criminalidade entre aqueles que tiveram atenção na educação infantil. Em segundo lugar, esses alunos são mais baratos. Tentar ensinar anos depois o que deveria ter sido aprendido na infância pode custar até 60% mais caro e é, segundo Heckman, ineficiente.
Para que tudo isso se torne verdade, há algumas condições em comum aos programas de sucesso observados. No livro Aprendizagem infantil, uma abordagem da neurociência, economia e psicologia cognitiva, organizado por Aloísio Araújo, da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro, Heckman e Flávio Cunha, professor da Universidade da Pensilvânia, relatam quais são: os professores da educação infantil recebem treinamento intenso e específico; as turmas são em número reduzido, assim cada criança recebe atenção especial; uma estrutura curricular que fornece uma rotina de ensino estruturada; e o envolvimento dos pais em todo o processo.
Em outras palavras, não adianta apenas criar vagas. É preciso planejar um ensino de qualidade para essas crianças. Isso sai bem mais caro que o mínimo estipulado pelo governo federal. Em Petrolina, interior de Pernambuco, cada criança atendida na educação infantil custa R$ 3.590 por ano. Elas fazem parte de um programa que atende crianças até 5 anos de idade, o Nova Semente. Até os 6 meses, período de amamentação, a mãe recebe em casa uma cesta básica. A partir dos 6 meses, elas entram no berçário. Há 70 crianças por unidade, num total de 86 escolas, que funcionam das 6 da manhã às 6 da tarde. Ali, as crianças recebem cinco refeições por dia e acompanhamento médico, odontológico e nutricional. Além, é claro, de seguirem um programa pedagógico, elaborado pelo Instituto Alfa e Beto, que também faz o treinamento específico dos professores – chamados de sementeiros. “A saída para escapar da demora das construções de novas creches foi fazer parceria com a sociedade civil, que cede os espaços”, afirma Mônica Couto, coordenadora do Nova Semente.
Há outra etapa da educação infantil ainda mais desatendida. As crianças de até 3 anos, que ficam em creches, também são responsabilidade das redes municipais. O número de matrículas nessa faixa etária cresceu 11,3% entre 2010 e 2011. Em dez anos, o país não conseguiu cumprir a meta de chegar em 2010 com metade das crianças atendidas. Hoje, são 20%. Quem determina essa meta é o Plano Nacional de Educação, cuja versão para a década 2010-2020 ainda não foi aprovada no Congresso. Quando for, os prefeitos terão de investir R$ 8 trilhões, em média, para matricular 3 milhões de crianças.
Tanto na pré-escola quanto nas creches, o que ajudaria os prefeitos seria seguir outra determinação da Constituição: criar mecanismos de colaboração entre governos locais e os Estados e o governo federal. Essa experiência já acontece no Ceará, onde, para cada creche construída pelo município, outra é bancada pelo Estado. Os avanços da educação infantil nos últimos anos foram significativos, especialmente quando foi deixada para trás a ideia de que se tratava de assistencialismo. Mas ainda faltam ao Brasil políticas públicas mais cuidadosas – e o país sai atrasado em relação aos que já iniciaram esse processo. No Canadá e na Finlândia, os gastos com os professores dessa etapa são os maiores de toda a educação básica. O México universalizou a educação infantil em 2009. A aposta é que, em 2016, o país deixe de tratar esse assunto como brincadeira de criança.