Introdução
Durante as últimas décadas, no Brasil, a autonomia escolar tem sido concebida, pelos educadores chamados progressistas, como mecanismo de participação social e política na esfera educacional, dentro do processo de descentralização do poder. Na ótica desses educadores, uma gestão autônoma deverá evidenciar perspectivas e/ou estratégias viáveis a uma prática pedagógica de acordo com as necessidades e anseios das camadas populares.
A autonomia deverá ser um processo que procura democratizar a prática pedagógica, permitindo a participação de toda comunidade escolar; participação essa nos âmbitos pedagógico, administrativo e financeiro, de caráter consultivo, deliberativo e normativo. Essa prática que, ao dinamizar os diversos segmentos que compõem a comunidade escolar, num projeto totalizador e solidário, possa contribuir com o seu papel de força auxiliar na transformação histórica da escola e da sociedade.
Assim, o objetivo deste artigo é apresentar, na primeira parte, a trajetória da autonomia escolar enquanto construção teórica e prática de uma determinada ótica prevalecente nas últimas décadas no Brasil, bem como mostrar, na segunda parte, a possível relação entre o conceito e a prática de autonomia, como possibilidade de propiciar uma prática pedagógica que enseja a construção de um espaço democrático para uma maior intervenção das camadas populares; estas que usufruem os serviços da escola pública, estatal e gratuita.
A autonomia escolar nas últimas décadas no Brasil.
A autonomia escolar entrou em pauta de discussão e ganhou espaço nos documentos oficiais do governo brasileiro em meados da década de 80, cujo processo de “democratização” torna-se presente nas instâncias política e civil. Presencia-se, então, a consolidação, na história da política brasileira, de conceitos como democracia participativa e representativa, e a possibilidade de a sociedade civil participar da elaboração e implementação de políticas públicas.
De fato, a questão da autonomia escolar já vem sendo discutida desde as décadas de 70 e 80, quando, por ocasião, os profissionais de educação manifestavam-se contra a falta de autonomia no ambiente escolar.[1] Os debates e os estudos sobre autonomia, nesse período, eram sustentados em pesquisas realizadas no próprio Brasil e em outros paises que já tinham fortalecido e ampliado o espaço de iniciativa autônomo da escola.[2] Somente no final da década de 80 e início da de 90 é que estes estudos passaram a consubstanciar-se em proposta central nas políticas educacionais em diferentes Estados.[3]
A partir disso, houve uma série de reformas educacionais em alguns estados e municípios, cujo objetivo era transferir algumas responsabilidades, que estavam nos setores centrais e intermediários da educação, para a escola. Porém, estas reformas não colocavam como ponto basilar o fato de que a escola deveria ser revestida de poder de decisão, tanto para elaborar e implementar o seu projeto pedagógico quanto para gestar as áreas administrativa e financeira, corroborando numa efetiva participação da comunidade interna e externa na estruturação da gestão escolar e de sua prática educativa e, conseqüentemente, em melhoramento no processo de ensino e aprendizagem.
Em verdade, essas responsabilidades deveriam sinalizar uma “autonomia defendida por vários setores da comunidade educacional, a defesa de maior participação e controle social na gestão da educação” (PERONI, 2003, p. 103.). Mas, a dubiedade do conceito autonomia nos documentos oficiais levou a entender que a autonomia administrativa fosse apenas a desconcentração de obrigações, e não a descentralização de poder. Da mesma forma, concernente a parte financeira, compreendia-se, dentro da ótica neoliberal, autonomia como privatização.[4]
Nos anos 70, as políticas educacionais, voltadas para a descentralização, foram fadadas ao fracasso por não terem, também, colocado a escola como núcleo importante de decisão e de atuação. Apenas nas décadas de 80 e 90 é que a autonomia escolar fez parte de algumas e poucas iniciativas de municipalização de ensino, predominando, em quase todas essas iniciativas, o projeto neoliberal de autonomia.[5] Logo, alguns instrumentos de organização foram criados para impulsionar a participação da comunidade escolar, como: colegiados ou conselhos deliberativos, normativos e consultivos, com representação de todas as categorias existentes na escola – diretor, professores, funcionários técnico-pedagógicos, pais, alunos –; e a eleição direta para diretor(a). Ademais, passa-se a transferir recursos para as instituições escolares para a sua manutenção e reformas.
Com essa concepção predominante de autonomia escolar, a saber, a lógica gerencialista do neoliberalismo, a política de descentralização continuou muito restrita, pois a estrutura do sistema de ensino se manteve inalterada em sua essência e demasiadamente centralizada, ou seja, permaneceu a homogeneização de regras e de normas para todas as escolas e os recursos mantiveram-se escassos. Enfim, para Borja, o projeto de autonomia que prevaleceu nesse período,
Ao contrário do que se propala, não descentralizou de nenhum modo o Estado; pelo contrário, diminuiu os recursos e as competências reais dos poderes locais, assim como os meios e a autonomia de
funcionamento dos organismos que realizam atividades sociais. Na prática, o caráter tecnocrático-centralizador do Estado aumentou, assim como a distância das classes populares em relação às instituições políticas como poder de decisão (Apud in: Oliveira, 1999, p. 13).
Diante dessa breve incursão histórica da trajetória e da configuração da autonomia escolar nas últimas décadas, é possível vislumbrar uma autonomia escolar que esteja em concordância com o que foi explicitado no segundo parágrafo da introdução deste artigo? Em outras palavras, uma autonomia que não pode se separar de sua significação política, social, cultural e econômica, isto é, capacidade de decidir, dirigir e controlar; portanto, de ser plenamente cidadão, de afirmar direitos e criar deveres (CHAUÍ, 1986). Será esta discussão que se pretende fazer na segunda parte deste artigo.
Autonomia escolar: possibilidades, limites e perspectivas para construção de uma prática pedagógica progressista.
A escola pública, para elaborar e efetuar o projeto pedagógico, de acordo com os preceitos gerais comuns organizados pela administração central da educação (secretarias de educação, delegacias de educação, etc.), e observando as suas especificidades, deve ter maior competência nos recursos humanos e uma ampliação massiva de recursos financeiros. Com a ausência desses dois critérios fundamentais na organização escolar, a autonomia é inexistente. É preciso salientar que determinar sobre os recursos humanos e financeiros é uma condição imprescindível para a consecução do projeto pedagógico. Projeto este compreendido como “tomada de consciência dos principais problemas da escola, das possibilidades de solução e definição das responsabilidades coletivas e pessoais para eliminar ou atenuar as falhas detectadas” (SPOSITO, 1990, p. 55).
Falar da participação dos sujeitos na gestão da escola pública implica em dizer quais os determinantes que condicionam a sua concretização. De acordo com Paro, os determinantes internos à unidade escolar são: materiais, institucionais e político-sociais (PARO, 2000).
O condicionante material está relacionado às condições reais de trabalho para a consecução dos objetivos educacionais de forma eficiente, que se apresentam e se desenvolvem na escola pública. Aqui, podemos elencar uma série de problemas apresentados pela escola, como, por exemplo, a deteriorização do prédio escolar, a falta substancial de equipamentos e recursos pedagógicos, salas de aula superlotadas, professores com carga horária de 60 horas, lecionando em diferentes escolas e salário do magistério aviltado. Se bem que a relação democrática e a participação dos sujeitos na gestão escolar não acontecem como decorrência direta de uma boa condição de trabalho; igualmente, a péssima condição material pode corroborar para o não surgimento dessa participação e, outrossim, de um bom desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem.
O determinante institucional reporta-se a forma como a escola pública está organizada. Esta organização, comumente, propicia uma relação que nega a participação da comunidade na gestão escolar. Centraliza toda decisão no diretor ao invés de estabelecer uma relação democrática entre os sujeitos da autonomia escolar. Ainda, cauciona uma estrutura hierárquica, de relações verticais, que precipita numa relação de sujeição. O diretor, no seu papel de autoridade máxima da escola, é visto como o detentor do conhecimento administrativo que pode solucionar todos os problemas logo apresentados; problemas que, muitas vezes, não são de ordem técnico-administrativa e sim de ordem política, sendo compreendidos pela falta de recursos e abandono do Estado.
Como bem lembra Paro (ibidem, pp.45-46):
Diante da atual organização formal da escola pública, podemos constatar o caráter hierárquico da distribuição da autoridade, que visa a estabelecer relações verticais, de mando e submissão, em prejuízo de relações horizontais, favoráveis ao envolvimento democrático e participativo. Além disso, o diretor aparece, diante do Estado, como responsável último pelo funcionamento da escola, diante dos usuários e do pessoal escolar, como autoridade máxima. Assim, tendo de fato que prestar contas apenas ao Estado ou município, acaba, independentemente de sua vontade, servindo de preposto deste diante da escola e da comunidade. Por sua vez, a existência de mecanismos de ação coletiva como a Associação de Pais e Mestres e o Conselho de Escola, que deveriam propiciar a participação mais efetiva da população nas atividades da escola, parece não estar servindo satisfatoriamente a essa função, em parte devido a seu caráter formalista e burocratizado.
A partir dessa realidade é que se deve pensar na reorganização institucional significativa que impele maior participação na escola. O que equivale dizer que a democratização permeada na escola possa consubstanciar mecanismos que provoquem exteriorização dos conflitos, das divergências e das decisões.
Outro risco iminente e determinante, que pode comprometer o trabalho coletivo em seu caráter autônomo e democrático, é a pressão que grupos afins (professores, funcionários técnico-pedagógicos, coordenador, gestor, etc.) debelam à escola em nome de interesses corporativistas e fisiologistas. Estes interesses múltiplos de grupos são os influentes político-sociais que atravessam as relações sociais dentro da escola. Assim, em seu cotidiano escolar
As pessoas se orientam por seus interesses imediatos e estes são conflituosos e contraditórios entre os diversos grupos atuantes na escola. Esses interesses contraditórios se manifestam nas relações interpessoais, em reunião do conselho de escola, em reuniões de pais, no comportamento diante da greve dos professores, no processo ensino-aprendizagem em sala de aula, enfim, nas múltiplas relações que têm
lugar no dia-a-dia da escola. Na perspectiva de uma participação dos diversos grupos na gestão da escola, parece que não se trata de ignorar ou minimizar a importância desses conflitos, mas de levar em conta sua existência,
bem como suas causas e suas implicações na busca da democratização da gestão escolar; como condição necessária para a luta por objetivos coletivos de mais longo alcance como o efetivo oferecimento de ensino de boa qualidade para a população (ibidem, pp. 46-47).
Destarte, estes conflitos precisam ser superados no próprio processo de democratização estabelecido na escola, explicitando-os da maneira mais radical para que possa almejar o objetivo crucial que é a melhoria da qualidade da educação.[6] Não se trata de excluir as divergências que surgem no espaço escolar, e sim de identificar as conseqüências dos interesses sociais dos grupos que se fazem presentes na escola para a consolidação e promoção da democratização da unidade escolar, que favorecerá, por conseguinte, a obtenção da qualidade de ensino.
Não se pode deixar de mencionar que a definição de competências e de atribuições tanto para os professores e funcionários técnico-pedagógicos quanto para os pais, alunos e comunidade, deve estar claro numa gestão autônoma. Estas atribuições e competências, em muitos regimentos e normas de conselhos escolares das escolas públicas, não estão explicitadas, causando uma enorme transtorno de cunho deliberativo e consultivo, o que contribui para o surgimento do “democratismo” ou do espontaneísmo.
Atinente à definição de competência e atribuição, os profissionais da educação, que atuam diretamente na escola, cuja gestão é colegiada, devem estar atentos para trabalharem em coletivo dentro do processo decisório interno. Para que isso seja realizável, a carga horária desses professores deve contemplar momentos para reunião e estudo. Esta dinâmica de trabalho em grupo resgata a escola pública como um locus coletivo, superando uma atividade estanque e compartimentada que se perpetua há muito tempo na cultura organizacional das instituições de ensino público.
Externamente, muitas limitações são apontadas na implementação da autonomia escolar, como oriundas do próprio burocratismo das instâncias administrativas que fazem parte dos sistemas de ensino, que são resguardadas por interesse, muitas vezes, clientelista, corporativista e político partidário. À proporção que as atividades de ordem pedagógica (como planejamento e elaboração do projeto pedagógico), assim como as de ordem financeira e administrativa, desenvolvidas em setores centralizados da estrutura do sistema de ensino, forem transferidas para as escolas, uma parte considerável destes setores burocráticos seria dissolvida, ou passaria a funcionar como
Uma burocracia menor e mais profissionalizada e operacional tecnicamente, sendo responsável, principalmente, por funções de capacitação e assistência pedagógica aos recursos humanos lotados nos estabelecimentos escolares e de assessoramento administrativo do conjunto do sistema de ensino (ABREU, 1999, p. 124).
A autonomia escolar, quando não pressupõe uma gestão cujo intento é servir de mediação para a realização de determinados fins, isto é, a “utilização de forma mais adequada de recursos para a realização de fins” (PARO, 2000), pode não consolidar em resultado positivo na qualidade do processo de ensino-aprendizagem. Isso acontece quando o necessário ajustamento de recursos e de pessoal para atender a finalidade da escola pública não é observado, ou quando é analisado de forma equivocada. Atentar para essa adequação é não incorrer no erro de fazer educação formal com salas de aula atulhadas de alunos, com 40 ou 50 alunos, incompatível com o processo do trabalho pedagógico; é não faltar os recursos materiais e humanos condizentes com a quantidade de alunos.
Isto significa que a função do Estado deve ser cada vez mais firmada enquanto provedor de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem. Já que, a autonomia escolar não isenta o Estado de suas atribuições, principalmente relacionadas ao financiamento. O Estado e as instâncias do poder central de educação, nas suas obrigações de oferecer um ensino público, estatal e de qualidade, devem adotar uma política estrutural que contemple dois eixos básicos:
Primeiro, definição de diretrizes básicas comuns, mínimas e flexíveis, sobre o que se deve garantir para todos, tanto em relação a currículos e seus conteúdos mínimos, aí incluindo capacidades a serem desenvolvidas e conhecimentos a serem adquiridos, quanto em relação a padrões mínimos de qualidade do ensino, referindo-se a condições de funcionamento das escolas, com a variedade e quantidade mínimas de insumos materiais e humanos, com o ponto comum de compromisso com a qualidade de ensino. Segundo, definição de normas de gestão democrática para as escolas públicas, garantindo a participação não só de professores e funcionários, mas também de alunos, pais e outros segmentos da comunidade no poder decisório e não permitindo que os problemas gerados pelos processos participativos prejudiquem o exercício da função mais importante da escola, ou seja, o ensino (ibidem, p. 126).
Portanto, a participação de diversas entidades, vinculadas aos profissionais da educação[7], para definição dessa política pública, é de fundamental importância. Isto porque, com o envolvimento nos debates e na elaboração de proposta em nível nacional, favorece um maior adensamento na tomada de decisão.
Considerações finais
Podemos concluir este texto fazendo a assertiva de dois pontos. Primeiro, enquanto condição determinante de uma prática progressista de educação, a autonomia escolar, ao fazer sobrepujar os interesses coletivos sobre os interesses particulares e corporativistas, torna-se, no interior das escolas, o principal elemento de democratização do espaço escolar. Sendo assim, a escola ocupa um lugar estratégico, pois a coexistência das várias concepções
de mundo com a ideologia dominante dentro da escola (como acontece também nos demais organismos da Sociedade Civil), possibilita, pelas suas contradições, a emergência das consciências e, conseqüentemente, a tomada de posição de certos indivíduos ou grupos. Desse modo é que se pode afirmar que a escola é um dos organismos da Sociedade Civil onde são reproduzidas as relações de produção para conservar determinado tipo de instância econômica existente, mas também onde surgem mecanismos que vão minar as estruturas desta mesma instância.
Segundo, a autonomia escolar, consolidada dentro da esfera de descentralização de poder do Estado, perfilada na cooperação entre União, estados e municípios, deve pautar nos princípios democráticos[8], visando, acima de tudo, o avanço da qualidade do ensino. Para isso ser realizado, são decisivos a conformidade entre as diretrizes instituídas em nível nacional e o espaço de ação da unidade escolar, e o “diálogo horizontal” entre os diferentes sujeitos envolvidos no processo de decisão, sejam eles diretor, professores, coordenadores, pais, alunos, assim como entre a escola e os setores administrativos da educação.
REFERÊNCIAS
ABREU, Marisa. Organização da Educação Nacional na Constituição e na LDB. 2 edição. Editora Unijuí, 1999.
ALMEIDA C., Júlio Filipe de. Descentralização e Regionalização. Lisboa: Litografia do Sul, 1979.
BARCELAR, Inalda B. Escola, Descentralização e Autonomia. In: Revista de Administração Educacional: Universidade Federal de Pernambuco. V. 1, nº 1 – jul/dez, 1997, Recife.
BARRETO, E. S. S. Contribuição para a Democratização do Ensino. Cadernos de Pesquisa. n. 34, p. 84-87, ago. 1980.
CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia. São Paulo: Cortez, 1986.
GENTILI, Pablo. A Falsificação do Consenso: simulacro e imposição na reforma educacional do neoliberalismo. Petrópolis, RJ. Vozes, 1998.
MIRANDA, Glaura Vasques de. A Questão da Autonomia da Escola. Educação em Revista. Belo Horizonte, n. 9. Jul. 1989.
PARO, Vito Henrique. Escritos Sobre Educação. São Paulo: Xamã, 2001.
_________________. Gestão Democrática da Escola Pública. 3 ed. São Paulo: Ática, 2000.
SPOSITO, Marília Pontes. Educação, Gestão Democrática e Participação Popular. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 15, nº 1. Jan./jun. 1990.
TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e Ideologia. 2 edição revisada. São Paulo: UNESP, 2006.
_______________________. Relações de Poder na Escola. In: OLIVEIRA, Dalila A.; ROSAR, Maria de Fátima F. Política e Gestão da Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
________________. Administração Escolar: introdução crítica. 9 ed. São Paulo: Cortez, 2000.
PERONI, Vera. Política Educacional e Papel do Estado: no Brasil dos anos 1990. São Paulo: Xamã, 2003.
PRAIS, Maria de Lourdes Melo. Administração Colegiada na Escola Pública. 3 ed. Campinas, São Paulo: Papirus Editora, 1994
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Eu aguardo as sementes que você possa vir a lançar. Depois selecioná-las e plantar.